Menu & Search

Texto: Elton Pila

Foto: Ildefonso Colaço

Edição 84 SET/OUT| Download.

Jared Nota – ‘‘Podemos fazer filmes autenticamente africanos’’

Da escrita à realização, pensa o cinema em todo seu arco de produção. Uma paixão alimentada a frente das telas no embalo das VHS levadas pelo pai – um fruto não cai muito longe da árvore – naquela Homoíne dos traumas de Eduardo White. Hoje, Jared Nota figura na nova safra de cineastas a levantar a bandeira da Afrocinemakers. Mais do que localização, é identidade e o que é tirado aqui para fora atesta.  O público maior talvez lembre de Kuga Munu, uma série a fazer luz para a sempre diabolizada tradição africana. Mas há vários curtas à espera de ‘‘play’’ em plataformas como o NetKanema e Youtube.

Publicidade

Teu gosto pelo Cinema surge na infância. Foi daí que surgiu a veia de realização?

Meu pai era viciado em filmes. Mas se algum dia eu tivesse dito que queria ser realizador, era imediatamente deserdado e perdia os meus cabritos, que depois foram roubados, mas isso é estória para outro dia.

Antes de Kuga Munu teria dito que não gosto de realizar. Gosto mesmo é de escrever, mas escrever é reescrever e realizar é a derradeira escrita neste médium visual.

Realizo pelo medo do risco de que o que escrevo seja mal interpretado da página à tela. Nada especial nesse medo, pois todo o roteirista o tem. Na verdade, gosto de toda a parte criativa e técnica do cinema, desde a escrita até a edição.

És parte de uma nova geração de cineastas. Que histórias os novos cineastas têm para contar?

Podemos fazer filmes autenticamente africanos e fazer florescer a nossa cultura e identidade e implicitamente desprogramarmo-nos do que consumimos dos outros. O consumo, directo ou indirecto, de tudo que não nos pertence é propaganda, desde a língua e seus pronomes. Tal como foram feitos vários filmes para tornar a nós africanos, menos hostis à homosexualidade, ou aos nossos colonizadores, ou até para nos ‘provar’ que Jesus é ‘caucasiano’, também podemos fazer este caminho com a nossa cultura.

‘‘Kuga Munu’’, como realizador, foi a tua estreia para um público maior. É uma série a fazer luz ao que fica escondido da tradição africana. Sentes que foste compreendido?

Fui enganado por mim próprio, pelo limite da minha capacidade de medir o que a audiência quer e o que eu quero. ‘‘Kuga Munu’’ misturou aspectos intelectuais com banais, porque nós africanos facilmente aceitamos que os outros, que falam a língua dos outros, e vivem do outro lado do oceano, sejam imensamente mais inteligentes e que estudem as suas crenças, que sigam monstros do folclore da sua cultura, mas quando essa combinação vem de um de nós não passa a tal “suspension of disbelief”. Enquanto projectos como Kuga Munu forem a excepção e não a regra dos filmes e seriados africanos, ainda será comum ouvir o que uma senhora do mercado me disse, quando lhe perguntei se ela assistia ‘‘Kuga Munu’’. “Oh, aquela novela que falam changana? Meus netos assistem. Mas porque não falam português? Custa falarem português?’’ – perguntou ela em Changana.

E isto te fez querer desistir desse caminho?

‘‘Kuga Munu’’ não me fez desistir de contar estórias mais nossas. Na verdade, aumentou essa paixão e vontade dentro de mim, só tenho de arranjar uma forma de enganar aquela senhora a assistir um filme todo na língua dela, com pessoas inteligentes e cultas, sem que ela reclame. Depois ataco os miúdos do TikTok e 10 anos depois, projectos como ‘‘Kuga Munu’’ serão os clichês, a regra, e não a excepção.

Sentimos um Jared diferente do dos curtas independentes e o da televisão. Os formatos moldam a tua linguagem?

Nos curtas, não devo a ninguém senão a mim mesmo. Na televisão, tentei misturar o eu e os outros e fiz ‘‘Kuga Munu’’. Depois disso, ao ser o ShowRunner de ‘‘Ex-amicíssimas’’, certifiquei-me que o seriado não fosse agradar a mim, mas sim à audiência. Como roteirista, consigo me desligar do guião, escrever o que vai agradar ao maior número de pessoas, uma escrita populista e é assim que venho trabalhando. É meu trabalho como profissional, pôr as mãos na massa e trazer um óptimo resultado. Se assim não for, se tudo que procuras no trabalho é prazer, então não nega quando disserem que o teu trabalho não é de verdade.

AFROCINEMAKERS, esta necessidade de   África do nome de onde surge?

Foi o único nome que me ocorreu quando percebi que tinha de dar nome à coisa que eu estava fazer, ao movimento de trazer jovens para fazermos filmes, ao que vinha depois se tornar uma incubadora de filmes, ao que agora é uma produtora audiovisual, ao que pode se tornar um estúdio, ao que um dia vai crescer e se tornar maior que qualquer televisão e produtora do país, espero, ao que um dia será global, mas nunca esquecerá de ser africano.

Edição 84 SET/OUT| Download.

 

0 Comments

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.