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Texto: Rafael Shikhani

Foto: Yassmin Forte

Edição 84 SET/OUT| Download.

Bertina Lopes – 100 Anos de irreverência e inconformismo

O percurso de Bertina Lopes entrelaça a arte e a militância política. De alguma forma pela mão, inspiração casuística ou não, pouco importa, do seu primeiro marido, o poeta Virgílio de Lemos outro inconformado com o regime colonial-fascista, com quem tem atritos e algumas refregas.

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Muita informação pode ser encontrada na internet, imagens, textos e alguns artigos. É mesmo assim, interessante seguir as pegadas artísticas e o percurso de vida desta senhora, conhecida pelos amigos e camaradas como Mama B.

Pessoalmente o que me interessa em Bertina, este personagem mestiça de nascença, de cultura e de vivência?

Os estudiosos de arte descrevem-na como modernista, de influência ocidental, da arte urbana e graffitters sul-americanos, mas fortemente influenciada pela poesia de José Craveirinha e Noémia de Sousa, que embrenha-se na denúncia dos aspectos ligados ao domínio colonial-fascista elevando a sua arte a um patamar de intervenção.

Sem ser cultora de Picasso, com quem diz-se ter encontrado na cidade-luz, Paris, dedica-lhe parte da sua pintura focada na denúncia da repressão política na Espanha. Nesse embalo a obra de Bertina é fortemente influenciada também, pelos eventos políticos em Moçambique segundo alguma fonte “pelo que se seguiu à independência de Moçambique”.

Aqui o assunto começa a ficar interessante, é esta Bertina Lopes que revela uma atitude crítica acima do convencional na cultura nacional, de ratificação do modelo político pós-independência, quando muitos ratificavam o novo status quo, outros exaltavam, Bertina Lopes, de alguma forma contesta. Imigra. Decide ficar na Europa.

De certa forma. Vive Bertina Lopes em Portugal e depois em Roma numa espécie de “exílio de cidadania” uma pessoa que combateu, com o seu pincel, paleta, formão, estecas e ideias, vai formando uma cidadania pária da turba ideológica ululante que dentro do país concorda, acoberta ou instiga os excessos que se cometem contra e em nome de um povo que se pretendeu libertar.

Nesta condição, errante ou propositadamente, vai Bertina a Roma e se instala em segundas núpcias (1964) com um italiano, admirador de arte e funcionário do Instituto de Segurança Social, Franco Confaloni. A distância, cultural, física e geográfica não a afasta de Moçambique que vive e sente no sótão da sua casa no n.º 98 da Via XX Settembre, no centro de Roma, entre a Piazza Esedra e Piazza Barberini, onde pinta, escreve, esculpe, cozinha e come uma ma’thápa com caranguejo sempre que pode. Laurentina que era adorava um bom prato da terra. Uma mistura das receitas, ambas tradicionais do lado paterno e do lado materno.

Realiza uma arte de intervenção, exclama nos seus quadros, uma melancolia de um país que tanto esperou e não viu, quem sabe esperava ver chegar. O que chegou não parece tê-la agradado. Não desespera, nem desanima realiza a sua própria procura e a busca de um país de todos. Igual, livre e prenhe de ideias e mãos para o fazer.

As paredes da sua casa reflectem ideias grafitadas de muitas pessoas. Anónimos, revolucionários extremistas uns, ortodoxos outros, não poucos simples passageiros de uma galeria-ilha, mas todos moderados longe do ceptro do poder e extremamente humanistas no fingimento da companhia de uma signora de artes. Tratam-na com carinho, e esquecem-na ao atravessar o umbral da sua porta, omitem-na completamente chegados aos seus círculos do poder em quais falam, ideologicamente uniformizados de uma política de êxtase popular.

Numa entrevista à Revista Tempo, chora para o jornalista “Sinto nostalgia da minha Terra”. Bertina quando falava da sua saída de Moçambique costumava dizer: “Minhã irmã Custódia era deputada da Assembleia da República, e eu era deportada”. Os países só são livres quando as mentes são livres, as pessoas livres quando podem falar dessa liberdade e ter a liberdade de pensar.

Nas águas-furtadas do número 98 da Via XX Settembre, em Roma Bertina, prossegue a busca pelo país pelo qual chorou, lutou e morreu, muito provavelmente sem ver a liberdade como a sonhava ou pintava. Percebe-se a nostalgia, o degredo artístico, o suspiro e a reclamação.

Sobre este degredo Samate Mulungo diz: “ela que nunca deixou o seu país. Ela vivia em Itália mas estava em Moçambique” percebe-se pelos traços doídos, vermelhos e cinza. Doía-lhe o país e os seus problemas. Teve coragem demais para sair e gritar longe dos que aplaudiam talvez ou, quem sabe, gritar por eles? Rui Balthazar recorda dela um “desmedido amor pela liberdade” e isso desvenda, de alguma forma a dor deste degredo depois da independência e sentencia de Bertina uma “arte eterna porque verdadeira”

Citando o título da mostra organizada no ano passado no Museo delle Civiltà em Roma, “Bertina Lopes. Via XX Settembre 98. La casa come luogo di resistenza” (a casa como lugar de resistência), hoje assiste-se ao apagar da resistência de uma revolucionaria antifascista e de uma deportada da liberdade. E o cal vai matando a história e dedicatórias sinceras ou cinzentas dos que lá passavam e repetiam. Políticos, aviadores, boémios, escritores, artistas, músicos, burocratas do sistema, estudantes e curiosos deixam as suas impressões nas línguas de Babel numas paredes agora em extinção.

As escritas e os grafittis nas grossas paredes das águas furtadas que foram fronteiras últimas da república de uma alma indómita, que pintou a liberdade, desfigurou a opressão, esculpiu o amor, os sonhos e a poesia apagam-se e com isso a história, sob os ditames canónicos de uma ordem judicial com a cumplicidade longíqua disfarçada na propositada inércia burocrática e vingativa julgando enterrar no esquecimento uma alma que sempre viveu livre, irreverente, indómita e inconformada, enfim uma estrela dos bons sinais da liberdade: “sou demasiado branca para ser negra e demasiado negra para ser branca”.

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