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Texto: Agnaldo Bata

Foto: Agojie Licula

Edição 83 MAR/AGO| Download.

AS AVENIDAS QUE NOS CONVIDAM A RESGATAR A NOSSA HISTÓRIA

Estou em Nampula, sentado algures na avenida Eduardo Mondlane com três amigos meus.  A conversa está ao rubro, atiramos para a mesa de conversa temas de diferentes áreas e geografias para serem triturados com a maior leveza possível, de modo a nos esquecermos dos dias duros e exigentes do trabalho. Somos originários de várias províncias do país e somos errantes em Nampula, o que torna a nossa conversa ainda mais agradável.  A meio da conversa, um amigo pergunta por uma direcção em Maputo, e outra amiga tenta solucionar-lhe a inquietação, mas sem a precisão requerida. Falta-lhe o nome de uma avenida e ela atira à velocidade do vento, “aquela avenida com nome de mulher!” Sem demora, a outra amiga, com alguma indignidade à mistura, riposta “temos avenidas com nomes de mulheres em Maputo?” E a resposta veio logo…. “Sim, temos…” e esta é seguida de uma pausa… “acho que temos… temos sim a Marien Ngouabi… Era essa que eu procurava”, a inquiridora prontamente esclarece que Marien Ngouabi era homem, antigo Presidente da República do Congo. Daí a um par de horas a conversa terminou aos risos e cada um seguiu o seu caminho.

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Horas depois, sem conseguir abrir a porta para que o sono me visitasse, segurava na minha mão o mapa mais recente da cidade de Maputo e, com uma aguarela encarnada na mão, o meu objectivo era unicamente sinalizar as avenidas com nomes de mulheres no mapa. Há nomes que eu já sabia de antemão que havia de encontrar e sabia onde estavam: Josina Machel, Graça Machel e Lurdes Mutola. Mas e depois?… Também era dos que pensava que Marien [Ngouabi] fosse mulher, afinal Marien remete-nos a Maria. Depois de alguma procura encontrei outros nomes: Emília Daússe… E só. Naquele momento vi-me acabadinho de acordar dentro do filme “Inception” de Christopher Nolan, a dar-me conta da realidade que sempre esteve diante de mim. Mas desta vez com uma nova questão implantada na minha mente: como é que as mulheres estão tão invisíveis na nossa história?

Há um padrão no nome das avenidas e ruas em Moçambique, particularmente em Maputo. São atribuídos a elas nomes dos revolucionários e/ou políticos, escritores, poetas e outras personalidades, nacionais e internacionais, que participaram activamente ou tiveram alguma interferência directa na fundação da nação moçambicana ou no processo de resistência à ocupação nacional, ou então datas ou regiões que nos remetem a esse momento da história: Eduardo Mondlane, Samora Machel, Julius Nyerere, 24 de Julho… encontram, indiscutivelmente, o seu lugar. É também possível encontrar nomes de políticos internacionais que não participaram directamente na fundação da nação moçambicana, mas cujos ideais foram, na época, considerados fundamentais para o efeito. Aparecem nesta lista nomes como Kim Il Sung, Olof Palm, Marien Ngouabi.

E a questão que me foi implantada é: onde estão as mulheres? Elas não existem! São invisíveis. Mas elas não são invisíveis devido a uma característica natural própria que as torna invisíveis. Elas foram e são invisibilizadas. É comum desde o surgimento das nações, desde os primeiros registos da história da humanidade. As mulheres são sistematicamente apagadas da história, simplesmente por serem mulheres! A sua constante relegação para planos secundários ou inferiores ao longo da sua vida, faz com que quando se conta a história elas nunca apareçam.

Desde o seu nascimento, dentro das famílias, vezes sem conta é, implicitamente, decidido que ela fica para o segundo plano a nível de investimentos para o seu crescimento social, o que vai contribuir significativamente para que ela tenha pouca participação activa na vida púbica, o que por sua vez lhe permitiria realizar mais actos heróicos públicos.

Já adulta, quando se casa, ela normalmente adopta o apelido do seu parceiro e o seu apelido de solteira é, ao longo do tempo, esquecido. Não é apenas um novo apelido que ela passa a assumir, é igualmente uma nova identidade que, diferente da anterior que contava a sua história individual, passa a ser mais do seu parceiro do que sua porque é através dele que ela se torna visível. Josina Machel, antes de se tornar Josina Machel era Josina Abiathar Muthemba, tinha uma história individual, mas esta é sistematicamente apagada para dar luz à sua identidade de esposa de Samora Machel. A própria “Avenida Josina Machel”, é prova desse “apagar” da história da “Josina Mutemba”.

As avenidas da capital denunciam essa invisibilidade da mulher na nossa história, embora elas tenham claramente estado presentes.

Portanto, é um sistema social do qual a história vai herdar a sua estrutura e que vai reproduzi-la de tal forma que nos faz parecer que ela é natural. Nunca percebi que praticamente não tínhamos avenidas com nomes de mulheres na grande capital moçambicana, nunca me ocorreu que houvesse poucas mulheres nas narrativas da fundação da nação moçambicana… e as avenidas e ruas da capital respiram e denunciam essa ausência!

E a outra questão que vem a seguir é: será que elas não estiveram lá? Na fundação da nação? Não sei a resposta exacta, contudo, há alguns indícios firmes que indicam que elas estiveram lá. Um braço feminino forte e activo existiu durante a luta colonial e continuou a existir quando a nação deu os seus primeiros passos. No entanto, além desse forte indício, não consigo imaginar um grupo de homens a lutar, fundando uma nação e fazendo-a crescer sem a presença activa das mulheres!  E é essa minha falta de imaginação que me fez acreditar que elas existiram, elas existem, mas o sistema social relegou-as para fora da fotografia e, hoje, meio século depois de Moçambique se tornar independente, as avenidas da capital denunciam essa invisibilidade da mulher na nossa história, embora elas tenham claramente estado presentes.

Edição 83 MAR/AGO| Download.

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