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Texto: Luís Lage e Carla Cortês

Foto: Júlio Marcos

Edição 82 JAN/FEV| Download.

De Lourenço à Maputo – Panorama de uma cidade em mutação

Quem é que, sentado à janela, não tentou identificar a sua casa, os marcos da cidade ou adivinhar o desenho de um lugar que se vê pela primeira vez? Inadvertidamente, debaixo dos nossos pés estão materializadas histórias do presente e do passado, do planeamento urbano e da arquitectura. No anúncio da aterrissagem, podemos ler Maputo cronologicamente, ou no seu reverso. Hoje, escolhemos o primeiro.

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De Lourenço partimos em 1782. Ainda presídio e cercado por pântanos, guarnecia uma terra já alvo de apetências internacionais. Em 1977, ainda vila e franzina, Lourenço tinha pouco mais de 110 edificações, e ainda só cabia numa porção da Baixa de hoje, e não além da 25 de Setembro. Dez anos e 250 edificações depois, Lourenço virou cidade. E a partir daí, Lourenço só cresceu. Juntaram-se planos, estradas e edifícios ao gosto internacional. Alguns de gosto tardio, num saudosismo estético que comprimiu o tempo. Três séculos, erguidos em quatro décadas. Numa pressa de ser metrópole.

Lourenço do Mercado, do Museu de História, e do Conselho Municipal, queria mostrar-se adulta, numa maturidade trasvestida em tradição de quem há muito se ergueu. Nesse conflito de gerações, Lourenço rendeu-se às tendências do seu tempo. E como quem acerta o relógio, Lourenço fez-se moderna. A par e passo do mundo, Lourenço seguiu descobrindo a identidade de quem habita os trópicos e precisa adaptar-se. Perfurou paredes, coloriu fachadas, esculpiu pilares. Na ânsia de ser como os outros, Lourenço tornava-se cada vez mais como as suas origens. Numa nova versão de si mesma, mas surpreendentemente similar ao que sempre foi.

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Os limites de Lourenço sempre foram tangíveis.
O mar, o pântano ou uma estrada.

Os limites de Lourenço sempre foram tangíveis. O mar, o pântano ou uma estrada. A antiga circunvalação, hoje Marien Ngouabi, determinava o crescimento planeado de Lourenço. E numa brusca mudança, erguia-se a sua antítese. Não mais ortogonal, nem em betão, nem de uso misto para viver e produzir. Antes, do outro lado da circunvalação, Lourenço consolidava-se numa estrutura orgânica, de madeira, caniço e zinco, e essencialmente homogénea e subordinada à primeira. Do seu próprio reverso nasceram outros patrimónios, fruto de outras resistências. Lourenço além do planeado, tornou-se berço das artes plásticas e cénicas, da literatura, desporto e da música. Consagrou patrimónios diferentes, e igualmente relevantes, do que a tese inicial.

Mas afinal Lourenço também se apropriava do que não era seu. Ele reivindicava os mesmos direitos que os britânicos e austríacos a quem impediu de se instalar. Lourenço se apropriara do direito de uso de terras alheias. Sobretudo dos Mpfumo, Maxaquene e Lhamanculo. E, em 1975, os anseios de Lourenço foram reprimidos, antes mesmo de instalar-se no quintal dos Mavota, Mubukwane, Nyaka e Tembe. E disto sabemos, porque Lourenço já tinha planos, há muito desenhados, de como expandir a norte e a sul.

Finalmente, Lourenço foi expropriado. E a mudança brusca, não foi apenas na transição toponímica, mas foi essencialmente formal. As trocas entre as duas versões de Lourenço intensificaram. O betão passou para o lado de lá e levou consigo o xadrez das ruas, o comércio e a oportunidade não apenas de existir, mas de produzir. Primeiro informalmente, depois em lojas e armazéns, como no Lourenço de antigamente. Aquele planeado para outras gentes. E este é o carácter de Maputo.

Maputo não é mais dual, como nos acostumamos a chamar. De contrário, se encerraria o léxico para descrever os novos assentamentos. Como então trataríamos o Zimpeto, Matendene ou Mapulene? Se num deles nos remete a nenhuma das versões de Lourenço?

De Lourenco à qual Maputo?

Lourenço do Mercado, do Museu de História, e do Conselho Municipal, queria mostrar-se adulta, numa maturidade trasvestida em tradição de quem há muito se ergueu.

Há 136 anos, esta cidade consolida o território pela construção como sistema de guarda. Mas ao contrário de Lourenço, Maputo já não luta pelo território com fortes, presídios ou equipamentos militares. As batalhas de Maputo são muito diferentes. Enquanto Lourenço planeava, executava e ocupava. Maputo desenha em acção. Copia o que viu, em alvenaria e betão, camuflado num plano do qual só ouviu falar. As batalhas de Maputo fazem-se na delimitação do espaço privado. Cada um no seu quadrado. E quando não dá, por causa do crescimento demográfico, Maputo negoceia limites e partilha recursos. Ancora a sua existência no muro alheio. Na expectativa de ter a sua legalidade documentada.

Maputo não é rígida como Lourenço. Mas dela herdou o passear na rua. Cresceu no improviso, no riso. Mascarou o sofrimento, como a sua própria ilegalidade. Aprendeu a fingir que está tudo bom. Que obedece a planos, e tem licenças para existir. Mas Maputo só quer se apropriar do espaço. Do talho, da via e do mercado.

Em colaboração com a Ordem dos Arquitectos de Moçambique.

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