Suleiman Cassamo – A obsessão pela palavra
“Veio do poente incendiado, lá do fim do mundo, pelo atalho dos fundos. Foi no derradeiro canto das codornizes, no último voo da rola, a oração das rãs nos pântanos, a terra cobrindo-se de sombras e de silêncio. Os mortos, quando regressam, diziam, trazem a cruz pesada da sua própria tumba, dobrando-lhes a coluna. Porém, nunca ninguém os viu de regresso.”
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Um atalho de síntese, vigoroso, áspero, de silêncio. É por este trilho que Suleiman Cassamo avança, no seu livro de estreia, “O Regresso do Morto” (AEMO, 1987). Cada palavra tem o devido mérito, calculada, balançada para que se estabeleça uma espécie de equilíbrio abstracto, entre o que se conta e como se conta e ainda assim comover o leitor. Não é apenas neste livro. Todo o caminho literário do autor parece estabelecer uma conexão entre o texto escrito e a oralidade, a terra e as pessoas, a fala e o gesto, o espanto e a fruição, atribuindo a todo o conjunto uma atmosfera cheia de humanidade.
O meu trabalho é laborioso (…), há esse olhar, palavra a palavra, há uma escolha criteriosa, como se aquela única palavra, aquela palavra exacta, merecesse lugar na frase.
Quem conhece Suleiman Cassamo sabe que o momento em que sai de sua casa, o momento de despedida, é repleto de hesitações, uma espécie de oração muda. Não é por acaso, Suleiman nasceu no meio da cultura ronga (do lado materno) – onde o gesto de despedir-se é cerimonioso – e islâmica (do lado paterno). Novo, aprendeu jogos tradicionais: ntchuva, zotho, ntumbeleluana, mudjobo. Só mais tarde vieram as revistas, os livros, os seus pais literários: Edgar Allan Poe, Ernest Hemingway, William Saroyan e Juan Rulfo, este último, talvez, seu maior mestre.
Para Suleiman, mais do que histórias e palavras, a Literatura é feita por meio de imagens, “as palavras não valem por si só. As palavras podem ser simples, mas as imagens têm de ser fortes”, disse.
Em 2022, devia ter publicado um livro de contos. Como não foi possível, começou a reescrita do seu último livro publicado. Quem lê percebe a diferença entre a edição angolana “A Carta da Mbonga” (2016) e a moçambicana “A Carta da Mbonga – Fragmentos Duma Vida Encalhada na Estação” (2021), imediatamente na primeira página.
“Acredito que alguns autores, numa primeira passada, já têm o texto feito. O meu trabalho é laborioso, lento, justamente porque há esse cuidado, há esse olhar, palavra a palavra, há uma escolha criteriosa, como se aquela única palavra, aquela palavra exacta, merecesse lugar na frase.”
Cassamo, quase que a trilhar um caminho paralelo ao do seu mestre Juan Rulfo, estreou-se como escritor há 34 anos, e tem publicados quatro livros. Rulfo publicou três livros, mas assumiu apenas a autoria de dois livros: “O Chão em Chamas”, livro de contos de 1953 e “Pedro Páramo”, romance de 1955. Suleiman divide a sua vida de escritor com a de professor universitário, em Ciência e Engenharia de Materiais e Economia. Para além de “O Regresso do Morto” e “A Carta da Mbonga” (União de Escritores Angolanos, Luanda), publicou também “Amor de Baobá” (Moçambique e Editorial Caminho em Portugal, 1997), um livro quase inexistente; “Palestra para um Morto” (Moçambique e Caminho, Portugal, 1998), uma obra excepcional e inteligente, a menos compreendida, talvez.
Polir a palavra até ao fulgor concreto e necessário exige mais do que talento e trabalho, exige paciência e capacidade de aprimorar os códigos comuns para que estes se tornem objectos literários notáveis. Essa é, possivelmente, a principal habilidade do autor de “Ngilina, tu vai morrer”.
▶ Destaques
Todo o caminho literário de Suleiman Cassamo parece estabelecer uma conexão entre o texto escrito e a oralidade, a terra e as pessoas.
“O meu trabalho é laborioso (…), há esse olhar, palavra a palavra, há uma escolha criteriosa, como se aquela única palavra, aquela palavra exacta, merecesse lugar na frase.”
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