Patagónia do Chile – No ventre da Terra
É de noite e dentro da tenda ouvem-se os sons abafados da floresta: o canto uivado de um mocho solitário, o marulhar fresco das folhas das árvores, o gargarejo doce de um rio próximo. De repente, um estrondo interrompe a sinfonia nocturna. Começa com uma espécie de ronco vindo das entranhas da Terra, como se ela – a Terra – tivesse sido acometida por uma dor de barriga. Segue-se um lento chiar lembrando uma fechadura de porta com falta de óleo. E por fim, o tal estrondo que resulta, só pode, do embate violento de um pedaço de glaciar que se desprendeu da enorme massa azul e gélida, tombando sobre a superfície da água. A intensidade é tal que nos sentimos no ventre da Terra.
O estrondo resulta de um pedaço de glaciar que se desprendeu da enorme massa azul e gélida. A intensidade é tal que nos sentimos no ventre da Terra.
Estamos na Patagónia do Chile e acampar junto a glaciares é apenas uma das experiências inolvidáveis que a aventura latino-americana nos proporciona. Com as notícias recentes da pandemia a forçar o país a fechar as fronteiras, vêm-nos à memória as três semanas de mochila às costas percorrendo a Carretera Austral – a mítica artéria construída nos anos brutais da ditadura de Augusto Pinochet para garantir acesso ao extremo sul do Chile.
O que mais vemos são jovens de mochila às costas, rumando até aos parques para passarem as suas férias em contacto com a natureza.
De manhã, entramos numa avioneta minúscula para sobrevoar os Andes e descobrimos como um novo planeta desabitado e esquecido subsiste incólume lá nas alturas. Sem intervenção humana, a natureza expressa-se em cores até aí desconhecidas da nossa palete; a água dos lagos baila entre o verde turquesa e o azul petróleo, reluzindo debaixo dos raios solares reflectidos pela neve que cobre os cumes. Com feições a honrarem a sua herança mapuche, e animado pela nossa reacção de deslumbre total, o piloto decide então desafiar a gravidade e entra num voo a pique em direcção ao glaciar. No último segundo, desvia a rota e faz-lhe uma razia alucinante – se puséssemos a mão de fora quase que dava para tocar a parede de gelo. O estômago fica preso algures no tecto da avioneta e os dedos apertam desesperadamente os braços do assento enquanto se solta uma gargalhada nervosa.
Sempre foi o meu sonho visitar o Chile, explorar o país que nos deu Pablo Neruda, Luís Sepúlveda ou Isabel Allende, entre tantos outros. Fascina-me a história de Salvador Allende, o presidente que tombou defendendo a democracia, proferindo palavras que ainda hoje se mantêm actuais: “Muito mais cedo do que tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor”.
Só depois de lá chegar percebi que, além das referências históricas e literárias, há uma riqueza natural que leva o país a preservar com orgulho a sua “louca geografia”. Do deserto de Atacama a norte até aos confins da Patagónia a sul, o território está quase todo ele organizado em áreas protegidas. Com uma área de 756,950 km2 (pouco menos do que Moçambique), o país tem 41 parques naturais, 46 reservas e 17 monumentos naturais. Um dos mais famosos é o Parque Nacional Torres del Paine (“torres azuis”), que ocupa uma área superior a 181 mil hectares, na região de Magalhães. Com montanhas, rios, lagos, vales e glaciares, é o sonho de qualquer adepto de trekking.
Durante o périplo pela Carretera Austral, o que mais vemos são jovens de mochila às costas, rumando até aos parques para passarem as suas férias em contacto com a natureza. A nossa aventura termina num autocarro, cruzando a cordilheira dos Andes para atravessar a fronteira com a Argentina, onde um voo nos levará de volta à Europa. Do outro lado, está Bariloche, uma estância de ski que parece um postal. Tão próximo, porém tão distante, da simpatia e simplicidade a que os chilenos nos habituaram.
▶ COMO IR
Após a reabertura das fronteiras, a forma mais directa de chegar é voando para Madrid e dali apanhar uma conexão intercontinental para Santiago do Chile. Da capital, é possível apanhar uma ligação para Puerto Montt, onde inicia a Carretera Austral, e dali seguir por estrada até Coyhaique.
▶ ONDE FICAR
Para os amantes da natureza, as áreas protegidas permitem acampar em zonas demarcadas para o efeito. Tenda e saco de cama podem e devem fazer parte da bagagem!
▶ ONDE COMER
Férias de aventura pedem um pequeno fogão para preparar refeições simples a acampar. Abasteça-se nas cidades principais para poder cobrir grandes distâncias por estrada.
▶ O QUE FAZER
As caminhadas ao ar livre são um dos grandes encantos do Chile. A capital é belíssima, misturando arquitectura histórica com edifícios modernos, e uma ampla oferta cultural e gastronómica.
▶ CUIDADOS A TER
O maior constrangimento actual é a pandemia. Certifique-se das medidas em vigor antes de planear a sua deslocação. Tendo em conta as temperaturas extremas na região da Antárctida, o mais recomendável é ir na altura do Verão do hemisfério sul.
Edição 67 Maio/Jun | Download.
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