Encontros Índicos com Mia couto e Edna Jaime
Os pés no sapato do outro
Na década de 1990, antes da canção de ninar na televisão pública, na flat de um prédio ao longo da 24 de Julho, na cidade de Maputo, Edna Jaime (n.1986), filha de um militar ndau e uma mãe chope, esbugalhava os olhos ao ver os anúncios de espectáculos da Companhia Nacional de Canto e Dança.
“Na arte tens de andar de desconforto em desconforto: no momento em que te sentes à vontade, a arte morre”, diz Mia.
Na cidade da Beira, rodeado de livros do seu pai que era escritor, jornalista e editor literário, o escritor Mia Couto (n. 1955), uma criança tímida, enamorava-se com a palavra, com a imaginação.
Estão os dois agora sentados para conversa.
Edna Jaime destapa o seu passado e a luz da memória revela uma adolescente urbana fascinada pelos ritmos tradicionais. Possuída por uma vontade avassaladora de compreender esse universo, aos nove anos, passa a frequentar a Casa da Cultura do Alto Maé.
“O meu pai levou-me a encontrar-me com os meus tambores”, conta a coreógrafa do espectáculo “Lady Lady” a Mia, que a ouve atentamente.
Cruzou a periferia para aprender danças tradicionais, acreditando que no subúrbio as encontraria genuínas, livres das contaminações modernas e ocidentais.
Edna Jaime vai escrevendo a sua história neste percurso que já faz há mais de 20 anos, se envolvendo com diferentes formas de dança. A narrativa da sua vida ganha forma a partir da experiência de cruzar o tradicional e o contemporâneo com o vocalista e dançarino Lucas Macuácua, membro fundador da orquestra Timbila Muzimba.
O encontro definitivo com a dança contemporânea foi em 2001, numa oficina dirigida pela brasileira Lia Rodrigues, organizada pela CulturArte.
“Eu não estava interessada, mas o Lucas insistiu e fui obrigada”, recorda Edna, com riso nos lábios. “Eu me enganei, ainda bem que me enganei”, prossegue, a revelar uma hesitação inicial em relação à dança contemporânea.
“Ao contrário de uma carreira científica, que exige certezas”, reage Mia, “na arte tens de andar de desconforto em desconforto, quer dizer que, no momento em que te sentes à vontade, a arte morre”.
Quando Mia se iniciou, na década de 1980, as editoras definiam que autores africanos deviam escrever sobre universos mágicos, conversas à volta da fogueira e outros estereótipos. Mas a realidade mostrou-se plural e diversa. Essa viagem, graceja, equivale à ida de Edna à periferia de Maputo.
A coreógrafa conta que, neste período pandémico, está a desenvolver com o artista audiovisual Ivan Barros, uma obra que reflecte sobre os sentidos que se dá à capulana como um modo de a preservar. Quer atirar uma pedra para a lagoa dos significados que os moçambicanos dão a este tecido de origem persa.
“Fiquei a questionar-me”, contou, “depois de ver o vestido do figurino cujo padrão é usado por curandeiros, como é que as pessoas vão interpretar, será que estou a misturar assuntos de medicina tradicional e a mulher, mas assumi o risco de a trazer para reflectir sobre um padrão que não fomos nós que criamos”.
Assumidamente descoordenado para a dança – ritmo, só na poesia – Mia encontrou, como revelou e Edna considerou bem conseguido, a sua dança para as palavras.
A invenção de palavras em português, explicou o escritor, tem o propósito de significar a língua tal qual ela é falada e percebida pelos moçambicanos. “[Quero] trazer a oralidade (moçambicana) para dentro da escrita”.
O país que conheceu como jornalista revelou ao escritor que a língua gramatical não obedecia à coreografia da fala comum, não vai na mesma direcção que a articulação das pessoas do quotidiano. Daí ter encontrado no neologismo uma forma de retratar a performance das nossas vivências.
A responder a Edna sobre a sua fonte de simplicidade, Mia contou que foi observando seu pai e que foi com ele que percebeu também que arte é a disponibilidade para ser no outro.
“Eu me enganei, ainda bem que me enganei”, confessa Edna, revelando uma hesitação inicial em relação à dança contemporânea.
Talvez seja esse contexto que o faz “desvalorizar” os grandes prémios literários. Para lá do Camões, Albert Bernard ou Neustadt, o seu maior galardão foi lhe atribuído, espontaneamente, numa das ruas da Beira.
“Passando pela ruína do Grande Hotel, na cidade da Beira, quando estava a escrever o meu último livro”, revelou o escritor, “num parque ali à frente estava um homem com talvez mais de 90 anos, rodeado pelos netos, bisnetos e fez-me um sinal, aproximei-me e pediu para me abraçar e disse: eu quero te agradecer por seres um pouco de todos nós”.
Edição 67 Maio/Jun | Download.
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